Baseado em Running With Scissors, o controverso livro, alegadamente autobiográfico, de Augusten Burroughs, publicado em Portugal pela Bico de Pena como Correr com Tesouras, Recortes da Minha Vida (Running With Scissors no original) é, apesar de relativamente recente (estreia nos EUA em 2006), uma pérola esquecida do cinema vivencial contemporâneo. E tem, agora, edição em DVD entre nós. Com argumento adaptado, produção e realização de Ryan Murphy, o filme conta com um elenco no qual se destacam, entre outras, as presenças de Annette Benning, Joseph Fiennes, Alec Baldwin ou Gyneth Paltrow. Antes de mais recorde-se a polémica levantada pelo livro, originalmente publicado como uma memória. Muitos dos citados levantaram-se contra declarações e situações referidas, denunciando-as como abusivas, mesmo falsas. O autor chegou a anuir, num encontro para compensação de perdas e danos, tratar-se de uma história essencialmente ficcional. O que não o impediu de, pouco depois, voltar a sublinhar o carácter biográfico da escrita...No filme, que em pontos ocasionais se destaca do livro, conhecemos a história de Augusten Burroughrs (interpretado aqui por Joseph Cross), um jovem filho de uma mulher perturbada que sonha ser um dia uma poetisa reconhecida e que, a dada altura, opta por deixar o filho, então com 12 anos, na estranha casa da família de Dr. Finch, o seu psiquiatra. Num pequeno mundo, no qual é difícil perceber se há sãos entre tantos loucos (a começar pelo médico), Augusten vive a sua adolescência. Infeliz. E regista, num diário, as situações pelas quais passa nessa excêntrica mansão na qual a árvore de Natal fica montada o ano inteiro e não faltam comprimidos para males da alma e onde encontra um novo conceito de família e um novo modo de vida, que cedo o leva a rejeitar a escola. É também aí que ocorre o despertar da sua sexualidade, numa relação com um homem mais velho que, como em tudo entre os Finch, se revela longe de seguir os caminhos mais esperados... Cortante paródia ao protagonismo do “psicologês” nas vidas contemporâneas, Recortes da Minha Vida cruza as linguagens da comédia com uma narrativa central dramática, o bizarro e o insólito deixando-nos frequentemente perdidos entre a gargalhada e mais um pólo de séria reflexão. Como explica depois o realizador num dos extras, esta é uma história onde não há bons nem maus. Todas as personagens têm um pouco dos dois extremos, instáveis, surpreendentes por vezes. Tão reais que parecem de ficção... De certa forma próximo de outros retratos, fragmentados, da vida comum que, nos últimos anos, encontrámos em filmes como Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou Happy Endings (Don Roos, 2006), Recortes da Minha Vida é filme a resgatar, quanto antes, ao anonimato a que parece votado. – N.G.